
Translinguagem no Ensino
Segundo Garcia e Wei (2004), a grande diversidade de perfis encontrados nas salas de aula dos dias atuais, não só em termos linguísticos como também sociais, educacionais e culturais, faz com que a translinguagem seja uma prática de potencial transformador quando utilizada como pedagogia. À medida que desenvolvem a criatividade e criticidade dos alunos, as práticas translíngues no ensino levam à melhoria do processo de construção de sentidos ao mesmo tempo que possibilitam que todas as formas de realidade sociopolítica sejam incluídas e ouvidas. Nenhum aluno bem como nenhuma forma de linguagem é deixada de lado. O professor abre mão de seu papel de autoridade em sala de aula, passando a ser apenas um facilitador e colocando-se, por diversas vezes, também no papel de aluno, assumindo muitas vozes e incentivando a cooperação mútua. Vejamos um exemplo ocorrido em uma escola de ensino médio nos Estados Unidos, aula observada ainda por Garcia e Wei (2004), na qual a professora de matemática utiliza a translinguagem em sua interação com imigrantes latinos:
Aquí nadie se equivoca. Quién quiere de decir algo?
(No one here is wrong. Who wants to say something?)
Uds saben que pueden usar inglés, spanglish o español, verdad que sí?
(You know you can use English, Spanglish, or Spanish, right?) (GARCIA; WEI, 2014, p. 97) [1].
Nota-se, nesse trecho, o papel facilitador da professora que incentiva o uso de todas as vozes e, ao enfatizar que não existem erros, deixa claro que todas as formas de exteriorização de opiniões são possíveis e bem-vindas, através da utilização de todo repertório linguístico dos alunos.
Ao preparar uma aula, o professor deve selecionar atividades que conduzam a essa prática de antemão. Williams (2012) utiliza o termo official translanguaging [2] ao referir-se a ações previamente planejadas pelo professor para a utilização da translinguagem em aula de modo a facilitar a compreensão e assimilação do conteúdo e aprofundar discussões referentes a problemas sociais. Já Lewis, Jones and Baker (2012b) utilizam o termo teacher-directed translanguaging [3] para referirem-se a essa forma de conduta. Deve-se ressaltar, entretanto, que a prática translíngue pelo professor envolve também estar apto a realizar alterações e adaptar-se às diferentes situações que venham a desvirtuar o curso de sua preparação, afinal a rigidez de conduta vai de encontro a tudo que representa a translinguagem. A seguir, apresentamos outro exemplo em sala de aula registrado durante as observações de Garcia e Wei (2004). Neste caso, em uma escola para imigrantes latinos nos Estados Unidos, a professora, Camila, utiliza-se de recursos audiovisuais (no caso um videoclipe de uma canção que contém trechos em inglês e em espanhol) para trazer à tona as diferentes histórias, discursos e repertórios de alunos imigrantes e suas famílias:
Camila then plays the music video “Sí se puede” by El Chivo of Kinto Sol which communicates the idea that “Yes, we can” fight against deportation of undocumented immigrants and separation of children who are US citizens from parents. The music video translanguages, starting with a white middle-aged man whose message is clear and in English: “Illegals are invading our country & our government is doing nothing to stop them! Immigration is out of control, Fellows. We got to do something”... the anti-immigrant messages are disrupted by the Latino children who are significantly wearing a T-shirt that says “Born in the USA”... “the music video itself is translanguaged, and from its perspective there isn’t Spanish on one side and English on the other” …” it’s the translanguage of the music video that creates a unity that is difficult to express, neither immigrant nor native and yet both; neither Spanish nor English, and yet a “both” that is a “neither” because it’s a new discourse, a product of post-coloniality, a translanguaging (GARCIA; WEI, 2004, p. 100-101) [4].
Notas
1 "Aqui ninguém está equivocado. Que quer dizer algo?
Vocês sabem que podem usar inglês, spanglish ou espanhol certo?" (tradução livre).
2 "Translinguagem oficial" (tradução livre).
3 "Translinguagem voltada ao professor" (tradução livre).
4 "Camila mostra aos alunos o vídeoclipe “Sí se puede”, de El Chivo of Kinto Sol, que passa a ideia de “Sim, nós podemos” lutar contra a deportação dos imigrantes ilegais e a separação de filhos,cidadãos americanos, de seus pais. O videoclipe utiliza a traslinguagem, iniciando com um homem branco de meia idade transmitindo em inglês e com clareza a seguinte mensagem: “Imigrantes ilegais estão invadindo nosso país e nosso governo não faz nada para impedi-los! A imigração está fora de controle, Companheiros. Temos de fazer algo”...a mensagem contra a imigração é interrompida pela imagem de crianças latinas vestindo camisetas que, de forma impactante, levam escrito “Nascido nos EUA”...o videoclipe por si só é um forma de translinguagem e apresenta uma perspectiva de que não existe o espanhol de um lado e o inglês do outro...é a translinguagem do videoclipe que cria uma unidade difícil de expressar, que não é nem imigrante nem nativa e, ainda assim, é as duas coisas; nem espanhola nem inglesa e, ainda assim, um ambas que significa nenhuma pois representa um discurso novo, um produto do pós-colonialismo, uma translinguagem" (tradução livre).
A riqueza de elementos que vão ao encontro das práticas translíngues nesse trecho é algo surpreendente. A seleção do material utilizado traz com tamanha clareza a ideia de multivozes de Bakhtin, do olhar fora do usual, do outro eu e do olhar do outro. É certo também, que a preparação de aula foi realizada de forma a motivar os alunos a dividir suas histórias pessoais, a aprender a ouvir o lado do outro e compartilhar experiências, angústias e utilizar de todo seu repertório translíngue para a realização dessa tarefa.
Ainda de acordo com Garcia e Wei (2004), é importante ressaltar que a translinguagem no ensino não se limita a professores e alunos de mesmo repertório linguístico. Contrariamente a essa ideia, professores monolíngues ou grupos de alunos nos quais vários idiomas estão presentes (e onde nem todos fazem parte do repertório linguístico do professor) também devem utilizar a translinguagem de modo a dar voz a todas as realidades presentes em sala de aula e aprofundar as formas de construção de sentidos. Um exemplo de conduta translíngue nesse caso seria o de agrupar alunos de mesmo idioma materno de forma que possam prestar auxílio mútuo tanto na comunicação com outros alunos e educadores quanto na construção de sentidos e compreensão do que está sendo ensinado.
Talvez o grande desafio da educação translíngue não seja o de planejar e inserir atividades que possibilitem essa prática em sala de aula mas sim o de que todos os atores envolvidos compreendam sua importância e sejam orientados e instruídos a utilizá-la estrategicamente em distintos momentos inclusive nos chamados critical moments por Garcia e Wei (2004), podendo adaptar-se às diversas situações que venham a enfrentar durante o processo. A grande dúvida é por que a translinguagem ainda não foi inserida nos contextos educacionais de forma mais sistemática uma vez que é uma grande realidade nas salas de aula dos dias atuais.
Para concluir, apresentamos mais alguns exemplos encontrados no livro Translinguagem: Linguagem, Bilinguismo e Educação, de Ofelia Garcia e Li Wei, de práticas que são e que não são consideradas translinguagem no ensino:
Exemplos do que é translinguagem:
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O professor apresenta 2/3 palavras chaves do vocabulário com suas definições no início da aula e pede aos alunos que traduzam essas definições em seus idiomas “de casa”;
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O professor faz os alunos ouvirem uma música em espanhol sobre o tópico do dia. A seguir, pede que respondam uma série de perguntas, a respeito da canção, em inglês;
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O professor permite que um aluno com dificuldades para dizer algo em inglês durante uma apresentação peça a um colega de classe para traduzir em seu lugar. Na sequência, o aluno com dificuldades é orientado a repetir o trecho em inglês;
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O professor pede aos alunos que examinem uma série de imagens e discutam em pequenos grupos o que veem e o que podem inferir a partir delas. Eles podem discutir em qualquer língua que desejam porém devem compartilhar com a sala em inglês.
Exemplos do que não é translinguagem:
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O professor fala em inglês e então traduz o que acabou de dizer para o espanhol após cada grupo de sentenças;
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O professor faz uma tradução palavra a palavra de um texto e orienta os alunos para que o leiam ou em inglês ou em seu idioma “de casa”; todos os alunos optam por ler apenas na língua “de casa” ou apenas em inglês;
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É dado aos estudantes uma leitura segmentada em parágrafos. Os parágrafos alternam-se entre inglês e uma tradução exata no idioma “de casa” dos alunos. (GARCIA; WEI, 2004, p. 124, tradução livre).